9 de maio de 2005

No país Cor de Mar

No país Cor-de-Mar todas as coisas lembram... o mar. E também o céu azul. Quase tudo é azul, com excepção de muitas coisas: os seus habitantes coloridos, que já vamos conhecer; as plantas que todos sabemos são verdes e castanhas; as flores de cores infinitas, os olhos azuis, castanhos, verdes e até vermelhos, como são os dos coelhos, e as lágrimas que não têm cor nenhuma, a não ser quando secam no coração, e aí podem ser da cor das sombras mais escuras.

Pois a um canto desse país, como se fosse o nosso quarto de dormir, estavam para aí uma dúzia de bonecos a derreter em lágrimas aguçadas daquelas que doem, mais ou menos assim, se a conta não estiver errada e eu ainda entender alguma coisa de sentimentos e cores. Porquê? Porque faltava naquele canto um boneco daquele grupo de amigos que tinha desaparecido no nevoeiro da memória. Ninguém se lembrava para onde tinha ido o Pintas. E já tinham passado dois dias inteiros que não tinham notícias dele, o que é tempo imaginado a mais!
Ninguém pode estar dois dias seguidos a imaginar o que quer que seja, quanto mais o desaparecimento de um amigo.

Descobriram entretanto, não me perguntem como, não sei como é que os bonecos descobrem estas coisas, que o Pintas tinha sido arrastado por um vento azul escuro de tempestade, um autêntico furacão cheio de maldade tinha-o levado num turbilhão. Para onde? Também descobriram, não me perguntem como, que ele se encontrava amarrado por urtigas nas masmorras de um castelo, o Castelo-Malcheiroso, na ponta de uma vara torta e comprida, com mais de muitos quilómetros de altura. Uma coisa horrível, não acham? Um castelo malcheiroso…

Não havia tempo a perder, era preciso enfrentar o responsável supremo por aquela vergonha: o Rei-das-Urtigas-Comichosas.

O amigo, com quem tinham partilhado tantas brincadeiras e alegrias, estaria com toda a certeza um trapo de tristezas.

Arrumaram as tralhas e partiram. Na verdade não havia grande coisa para arrumar, pois os bonecos de pano são muito desligados das coisas materiais:

• não têm carro porque andam sempre ao colo ou nas asas da imaginação;
• não precisam de comida porque o seu alimento são os sorrisos das crianças e o pó das estrelas (e, mesmo sem nos apercebermos, há sempre pó de estrelas a cair sobre a nossa cabeça);
• têm poucos livros porque sabem a maior parte das estórias de cor e os livros que têm não pesam porque são imaginados;
• precisam de água, não para beber, mas para tomar banho, isso sim, porque ficam feios os bonecos de pano sujo.

– Não há problema algum – diz o ursinho Muiot dando duas piruetas no ar. – Tenho a certeza de que iremos sempre encontrar água limpa por esse Mundo fora. Havemos de encontrar rios e lagos, cascatas e charcos.
Todos concordaram, evidentemente. Mesmo com muita imaginação era impossível imaginar terras sem água!
Puseram-se ao caminho nas asas da imaginação, que desta vez tinha a forma de elegantíssimas Graças-brancas. A imaginação toma a forma que nós queremos, é sempre assim e assim é que é bom! As Graças-brancas são aves iguais, iguais às garças-brancas, só que as primeiras são do Norte e as últimas do Sul. Elas vieram a correr, isto é, a voar, do País-das-Aves-Brancas-Voadoras, que é mesmo ao lado da Terra-do-Pai-Natal, depois de terem estado a treinar muito e rapidamente para uma longa e complicada viagem – cerca de 2 minutos! O tempo de as imaginarmos! E já era quase demais para passarada de imaginação, que o tempo é curto quando falamos de salvar amigos em aflição. Além disso, as Graças-Brancas-Voadoras são grandes conhecedoras dos Céus-da-Fantasia; e sem ninguém lhes dizer nada adivinham, sem mais nem menos, os caminhos para todos os lugares, mesmo para os que não são nada agradáveis, que também os há neste mundo.
-- Bonecada, pernas ao caminho, que temos asas para voar e imaginações para conquistar! – gritou aos saltos, como um violino desafinado, o Cão Guru, entusiasmado com a aventura que se adivinhava, apesar de nada fácil.
-- Vamos bonecada preguiçosa, saltem para as nossas asas e digam as palavras mágicas que tornam tudo possível: «Toca-a-correr-toca-a-voar/Toca-a-acreditar-na-força-do-imaginar!»-- cantaram as garças em uníssono. (As Garças falam sempre a cantar, para que se saiba.)
-- Força nessas cabeças, que temos de atravessar a Terra-dos-Sonhos-Desfeitos, o que será muito difícil se não encher-mos o coração de sorrisos e amizade. – disse a pernalta flor Travessura para encorajar os amigos, girando as pétalas no ar e espalhando tanto pólen que todos espirraram ao mesmo tempo. (Todos, atchim!)

A Terra-dos-Sonhos-Desfeitos era um lugar desconhecido para todos, mesmo para a passarada habituada a muitas e longas viagens. Porém, todos já tinham ouvido o vento soprar que era sítio de moléstias perigosas. Era uma terra muito estranha, sem presente nem futuro, apenas com passado. Ninguém sabia muito bem o que isto queria dizer, mas dava medo um desconhecido tão assustador.
Aproveitando a risada à custa do espirro colectivo e antes que a coragem faltasse, o Dó, boneco da Dólândia, terra de “gente” corajosa, saltou de rompante para as asas de uma das novas amigas e, com os cabelos em pé, tocou uma corneta de plástico prateado quase mágica, a dar a partida.
Arrancaram os pés do chão e numa corrida acelerada, como fazem os aviões, as Garças ganharam velocidade e levantaram voo. Não havia tempo a perder, porque nos Céus-da-Fantasia os ponteiros dos relógios giram rápidos e loucos.

A voar à velocidade mágica de não-sei-quantos-aviões-supersónicos, chegaram a uma espécie de céu cinzento e frio onde chovia o tempo todo uma poeira castanha escura que cheirava a enxofre. Sabem como é o cheiro do enxofre? Não? Pois não queiram saber, porque é muito malcheiroso! A Trinca-Linhas, de olhos arregalados, até escondeu o nariz nas penas da sua Graça (De que cor? Quem se lembra?), a ver se evitava respirar tal cheiro fedorento! Mas nada, a coisa era mesmo séria, e aquilo só podia ser de alguma coisa muito podre!
Apesar do receio do desconhecido, tinham de averiguar o que era aquilo. Fizeram um voo picado (engraçado este nome não é?) e aterraram num lugar descampado, onde tudo era escuro e triste e não havia cores a não ser cinzento e castanho. Até estremeceram quando perceberam que só podiam estar na... Terra-dos-Sonhos-Desfeitos!
Dó assumiu a liderança do grupo e avançaram em forma de V, com ele na frente, o mais corajoso. O que foram descobrindo era muito feio, que quase não vale a pena contar. Bem, é melhor não contar... Conto?
Os rios eram de lama a cheirar a batatas podres e arrastavam-se pelos leitos vagarosamente. O som que faziam nada tinha de parecido com os rios que nós conhecemos. Pareciam mais um choro vindo lá do fundo dos esgotos, a pedir ajuda – ouvia-se: «Roubaram-me o oxigénio, roubaram-me o oxigénio!». E aquilo era repetido vezes sem conta numa lamúria que dava pena. Uma coisa assustadoramente triste.
Peixes nem vê-los, a não ser uns não-sei-bem-quantos, coitados, mortos na margem, com duas cabeças, três rabos e sete barbatanas! As duas bocas abertas e os quatro olhos esbugalhados pareciam implorar por uma ajuda que não tinha chegado a tempo.
As plantas pareciam minhocas gigantes contorcidas de dor, castanhas, e pareciam ter secado ao sol, que ali era negro e congelava em vez de aquecer. Não tinham folhas nem flores.
Também as árvores pareciam esqueletos, sem folhas, e cuspiam uma seiva castanho-chocolate-azedo por umas feridas que se abriam nos troncos – horrível! Dessas feridas na casca saíam vermes, lagartas horrendas de três cabeças e um olho no meio da testa. Eram os únicos bichos vivos e que conseguiam aguentar aquilo. Dos outros só havia pegadas na lama, tinham fugido para não-se-sabe-bem-onde. Mas quem, no seu juízo perfeito, é que podia viver num sítio daqueles? Ninguém! Só os vermes que não têm juízo nenhum!
Vejam bem que, de buracos no chão, saía um fumo-espesso-e-negro-com-cheiro-a-escape-de-carro! A D. Geleia e o Sr. Compota, que já eram mais velhotes, começaram a ter problemas respiratórios e a tossir desalmadamente! Era tempo de partir sem olhar para trás.
Sabiam que estavam no caminho certo, porque, como já aqui se disse, aqueles bonecos adivinhavam tudo.
Depois de muitas nuvens percorridas, sempre a subir, e de sei-lá-quantas-voltas-aos-relógios, avistaram lá bem na ponta de um pau esguio e torto, do tamanho das coisas-maiores-que-existem, o tal Castelo-Malcheiroso do tal Rei-das-Urtigas-Comichosas. Tinha uma arquitectura nojenta e assustadora, por isso assustaram-se e enojaram-se. Parecia derreter numa lama que cheirava a meias-de-um-mês-sem-lavar -- sabem como é?! Mata qualquer um do nariz.
Mas não se deixaram ir abaixo das canetas e penetraram às escondidas no Castelo-Malcheiroso, vestindo fatos-anti-nojo, que lhes permitiam andar pelo meio das urtigas e da lama sem apanharem comichão ou ficarem presos naquela cola pegajosa.
Quando chegaram às masmorras -- umas caves onde o ar não era ar mas uma coisa qualquer parecida com o vento-que-sopra-nos-intestinos-das-vacas... nem vamos falar agora disso, por favor--, ouviram um som baixinho que parecia ser a voz do Pintas. Correram aflitos pelas galerias à procura dele. A mais adiantada era a Travessura, que é pernalta e corre mais que toda-a-gente-junta. E foi ela que o encontrou em primeiro lugar, encostado a um canto – os bonecos, como nós, gostam de ficar assim arrumados a um cantinho, principalmente quando estão tristes --, com muitas lágrimas-secas-no-coração e no tecido junto aos olhos. Além disso estava cheio de comichão por causa das urtigas com que o tinham amarrado! O Pintas, agora muito alegre de ver os amigos que tinham vindo em sua salvação, confessou:
-- Sabem, descobri que quando ficamos sozinhos a um canto, abandonados, ficamos tão tristes que podemos desaparecer num vento-azul-escuro-de-tufão e sermos transportados para a Terra-dos-Sonhos-Desfeitos. E se a tristeza for grande, podemos mesmo ficar aprisionados nas masmorras de um qualquer castelo-assombrado, amarrados para sempre a uma tristeza-de-chumbo.
Um dia, a adivinhar a viagem dos amigos, um pássaro-branco-de-luz tinha vindo falar com ele e tinha-lhe dito que sabia como se podia acabar com a tristeza-eterna-que-afinal-não-era-eterna! Às escondidas tinha lido o Livro-dos-segredos-dos-Reis-malvados-da-Terra-dos-Sonhos-Desfeitos. Mas a tarefa exigia a colaboração dos amigos.
-- A amizade – disse o Pintas em voz alta e com a sua pele de sapo toda arrepiada de emoção – é o segredo, a arma com que podemos atirar ao chão os castelos-da-tristeza e refazer os sonhos de todas as crianças e de todos os bonecos, rasgando sorrisos no céu. E continuou:
-- A solução para acabar com a destruição e a morte que há na Terra-dos-Sonhos-Desfeitos é muito simples, mas algo trabalhosa. Estão dispostos a esse esforço?
Todos responderam que sim num grito do tamanho-de-mil-buzinas-de-camião, que logo fez estremecer as paredes viscosas e bolorentas do Castelo. Pedra atrás de pedra, que mais pareciam caramelos azedos a derreter, o castelo começava a desmoronar. Nisto ouviu-se o Rei-das-Urtigas-Comichosas com os seus guerreiros-comichão aproximarem-se desesperados, berrando como bichos enraivecidos; mas não se viam, pois eram invisíveis os tinhosos. Era hora de fugir, que daí a pouco tudo aquilo seria um monte-de-papas-azedas.
Já nas asas das Graças-Brancas-Voadoras, Zetas contou aos amigos o resto do segredo:
-- A Terra-dos-Sonhos-Desfeitos não tem Presente nem Futuro porque, há muito tempo atrás, os que lá viviam destruíram tudo com maus comportamentos. A poluição, o lixo, a falta de respeito pela natureza apagaram as cores das coisas, tiraram o oxigénio do ar e da água, lançaram no ar gases tóxicos e nas águas venenos mortais, os animais e as plantas morrem de doença!
A solução está em unirmo-nos todos, pedirmos à D. Geleia e ao Sr. Compota que escorram dos céus geleias e compotas mágicas, que limparão toda a sujidade!
E há mais uma coisa: vamos pedir ajuda aos meninos e meninas para que não deixem sujar a Terra! E nunca deixem os amigos sozinhos!

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